

Prof. Dr. Tomás Cantista Tavares
Indignação Perante a Injustiça

1 Abril 2021
H
á uns meses, já em plena pandemia, em arrumações de papeladas antigas, deparei-me com a ficha das minhas notas finais do 9.º ano de escolaridade. Qual não foi o meu espanto, quando
constatei que tinha obtido notas elevadas às disciplinas de ciências (matemática, física, química, economia…) e classificações vulgares às cadeiras de humanidades (português, inglês, francês…). Já não me lembrava deste facto, nem da razão exata porque segui humanidades no secundário e, depois, o curso de Direito na Universidade. Aos olhos de hoje, parece-me um nonsense. É verdade que à época ainda não se faziam testes psicotécnicos apurados – mas, sobretudo, não me recordo de qualquer resistência dos meus pais a esta decisão. Confrontei então o meu pai com este paradoxo: “Não teria sido sensato que tivesse contrariado (ou pelo menos confrontado) o meu desejo de cursar Direito, quando tinha 14/15 anos, sem ninguém na família com essa formação e perante as minhas notas finais do 9.º ano de escolaridade?”. A sua pronta e imediata resposta – lembra-se, ainda hoje, do que me havia dito há 35 anos – foi desconcertante e reveladora: “Tomás, como te podia desencorajar, se tinhas uma enorme indignação perante a injustiça!”
Este episódio serve de mote para algumas reflexões dirigidas aos estudantes de Direito, em jeito de conselho, legitimado, infelizmente, pelo avançar da minha idade!
Durante o plano de formação (licenciatura e mestrado), os alunos de Direito têm o privilégio de aprender as ferramentas essências da ciência jurídica. Não é um curso fácil. Há que entrar numa linguagem conceptual específica. Manejar raciocínios hermenêuticos complexos. Aprender as técnicas de interpretação de cada uma das cadeiras. Embrenhar-se nos códigos e sua linguagem. Obter uma visão global, panorâmica e unitária de cada área jurídica e, ao mesmo tempo, dominar os mais ínfimos pormenores de inúmeros preceitos legais. E tudo isso em vastas áreas jurídicas.
O jurista não é, porém, um mero técnico. Alguém que conhece “laboratorialmente” uma ciência. É muito mais do que isso. Serve a Justiça. A Justiça não é uma ideia abstrata ou assética, tipo um caso prático de exame entre o Senhor A e o Senhor B. Existe para servir pessoas concretas. Para conferir e tutelar os seus direitos. Para as proteger. Para lhes dar o devido. Para pacificar relações sociais. Para evitar abusos e violações dos seus direitos.
Os atores judiciários vivenciam isso todos os dias: o juiz, na legal, pondera e prudente decisão de efetivar a justiça no caso concreto; os advogados na defesa dos seus clientes, para lhes proporcionar uma vida mais digna e justa; e todos os demais agentes trabalham para idêntico propósito, desde as polícias (e, felizmente, há cada vez mais juristas nessa profissão), funcionários, procuradores e consultores jurídicos nas mais diversas áreas jurídicas.
Esta sensibilidade e mundividência é uma das pedras de toque de qualquer jurista. Inegavelmente, torna-se mais percetível na vida real, via learn on the job.
No entanto, os estudantes das Universidades de Direito devem, desde já, interiorizá-la e cultivá-la. Assim como os alunos de medicina apreendem, porventura mais facilmente, que o seu estudo contribuirá para amanhã dar saúde a pessoas concretas; assim também, os alunos de Direito devem tomar consciência de que o seu estudo permitirá que no futuro ofereçam melhor justiça a pessoas determinadas, sobretudo, assim se espera, aos mais carenciados da Sociedade. Eis a nobreza destas duas profissões.
Esta consciencialização é importante, mas insuficiente. Os estudantes, enquanto são estudantes, devem acompanhá-la de atuações concretas, em muitas e variadas facetas e domínios: pensar, escrever, protestar, apoiar... No fundo, que os vossos ideais e sã irreverência contribuam, desde já, para transformarem o mundo num espaço um pouco melhor.
Cada aluno deve interpelar-se – e seguir o seu caminho. Eis algumas sugestões: contribuir com tempo para uma causa social ou de voluntariado; interessar-se por temas de atualidade com repercussão jurídica; cultivar o estudo e discussão crítica desses temas, em total respeito pela liberdade, e vendo sempre as questões, em todos os seus ângulos de análise; insurgir-se na prática contra a injustiças que minam a são convivência em Sociedade; interessar-se por causas políticas, não tanto (ou apenas) no sentido partidário, mas mais em questões que interessam a movem a Comunidade.
As causas são muitas, infelizmente: o apoio aos mais marginalizados (refugiados, crianças abandonadas ou em dificuldade ou pessoas de terceira idade…); a solidariedade concreta com as vítimas de crimes, hoje com especial atualidade na violência doméstica e abuso de menores. Mas também, e porque não, no apoio à ressocialização dos presos; ou o combate e denuncia aos abusos de poder perpetrados pelas mais diversas entidades públicas.
Não se esqueçam, todavia, do essencial. Esta bondosa indignação e ação não vos podem desfocar do mais relevante. A tarefa mais importante do aluno de Direito é estudar afincadamente e aprender. Aprender muito. Mantendo o paralelismo: o aluno de medicina será tanto melhor médico, quanto mais se instruir nos bancos da Universidade (e se tiver esta visão humanista). A medicina não se faz por compaixão. Claro que isso importa, mas o mais relevante é adquirir o máximo de conhecimentos sobre o melhor estado da arte da ciência médica. O mesmo se passa no Direito. Os alunos devem cultivar a justiça, como referi. Mas servi-la-ão tanto melhor no futuro, em benefício de pessoas concretas, quanto maiores forem os conhecimentos técnicos que aprendam agora na Faculdade. A Justiça não se basta com voluntarismo, ativismo e boas intenções. Requer elevado acervo de conhecimentos jurídicos, com rigor e qualidade científica. Só assim se dá a cada um o que lhe pertence.
É este o exigente papel dos professores. E, também, o maravilhoso desafio para os alunos.