


Paula FilipaVieira
Tomás Carvalho Guerra
Por uma Constituição Europeia

7 Março 2023
A
pós a Primeira Grande Guerra a Europa viveu tempos instáveis, onde o dia seguinte era apenas mais um prolongar da espera (que, infelizmente, se veio a revelar justificado) por uma
nova Grande Guerra. Tendo em conta que, durante a maior parte do século XX, a Europa foi o campo de batalha de um dos maiores conflitos mundiais que alguma vez ocorreram (onde não se perdeu nada menos do que a chama de humanidade), aqueles que ainda se agarravam à esperança de um mundo melhor, e face às adversidades mundiais, iniciaram, como uma verdadeira fénix, o processo de integração europeia, que nasceu de “um imperativo político de paz”. Pela primeira vez, não obstante a existência, no passado, de realidades proto-europeias (como era o caso da Republica Christiana), surgiram propostas para a “união” dos Estados da Europa. Começamos, desde logo, por apontar a Europa Communis (HEERFORDT), a Pan-Europa (COUDENHOVE-KALERGI), a Nação Europeia, o Federalismo Europeu e a União Aduaneira Europeia.
Destarte, e fatidicamente, a crise económica mundial, desencadeada pela Grande Depressão, sucedida pela ascensão do nacionalismo “liquidaram a intenção de encetar o processo (...)”.
No entanto, desbravado o caminho inicial, e terminada a Segunda Grande Guerra, nasceu a CECA, a 18 de abril de 1951, pela mão do Tratado de Paris, no seguimento das conceções do Plano Schuman. A partir deste momento, esta figura-mãe veria a sua estrutura mutada sucessivamente, sempre com o objetivo de instaurar uma integração gradual.
Nos termos do ancião Plano de Modernização e de Equipamento Francês de JEAN MONNET (que inspirou o Plano Schuman[i]): “A Europa não se fará de imediato, mas numa construção conjunta (...)”. Embora a CECA tivesse uma vida relativamente curta (de acordo com a vontade manifestada pelos Estados-contraentes), não seria por isso que a tripla dimensão funcional era menos acentuada (dimensão espiritual, dimensão económica e dimensão de recuperação). Aliás, demonstrava, agudamente, uma vontade em instaurar uma fase transitiva que iria auxiliar a Europa a tornar-se numa figura que unia os “indivíduos e a comunidade”.
Assim, tamanho foi o sucesso da interligação dos Estados e a vontade de avançar para a próxima fase que a 25 de Março de 1957, na esteira do Relatório Spaark, é assinado o Tratado de Roma, que institui a CEEA e a CEE, pretendendo a “integração geral das atividades económicas dos Estados-membros, com o objetivo da criação do mercado comum europeu que estabelecesse os fundamentos de uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus”.
Ao longo dos anos seguintes foi-se verificando um rápido alargamento dos Estados-membros e, não obstante as tentativas falhadas do Planos Werner, Plano Barre, Relatório Tindemans e Iniciativa Jenkins, foi iniciado, mais tarde, o processo de União Económica e Monetária, que sofreu grandes influências, em especial, do Plano Werner e Barre.
Em 1 de julho de 1897, entra em vigor o Ato Único Europeu, que instaura o Mercado Interno Comunitário, e em 1 de Novembro de 1993 entra em vigor o Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht) que cria, finalmente, a atual figura da União Europeia (UE).
Ora, depois deste percurso histórico, cumpre desacelerar no ano de 2004, em que se tentou a última fase da integração europeia: a União Política. Depois do rápido crescimento económico (mas tímido crescimento político) e da colossal adesão de Estados ao Projeto Europeu (hoje, a UE conta com 27 Estados), iniciaram-se os trabalhos para a construção de um Tratado Constitucional Europeu, com o objetivo de “(...) compensar o efeito diluidor que à integração ia ser trazido pela adesão maciça de tantos e tão diferentes Estados.”. A Convenção sobre o Futuro da Europa, constituída pelo Conselho Europeu em 2001, apresentou, em 20 de junho de 2003, ao Conselho Europeu, o Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Embora o manuscrito final aprovado pela Convenção ficasse muito aquém das necessidades da UE, iniciou-se o processo de ratificação do Tratado. Infelizmente, embora já se soubesse de antemão, este não obteve as assinaturas necessárias e foi (quiçá definitivamente) abandonado, a 1 de novembro de 2006.
Podemos apontar, de uma forma superficial, que o Tratado Constitucional sofreu um severo golpe a partir do momento em que os referendos realizados em França e na Holanda denunciaram que estes Estados fundadores iriam recusar a ratificação da CE. A este respeito, aliás, o próprio NICOLA SARKOZY, afirma, rapidamente, que o Tratado estaria “morto” após os referendos realizados. No entanto, cumpre entender o porquê deste Projeto Constitucional ter sido chumbado para, desta forma, tentar corrigir as falhas passadas na esperança de um futuro mais radiante.
Interessante é o facto de, em França, a Assembleia Nacional e o Senado, terem aprovado a CE mediante uma esmagadora maioria de 92%. Em paralelo, na Holanda, aproximadamente 85% dos deputados aprovaram a ratificação do TECE. Por que razão é que, tendo em conta o relatado, o povo Francês e Holandês chumbou a adesão ao TECE no referendo?
Parece que, entre outras razões, a nosso ver, o povo holandês e francês chumbou a CE por dois grandes motivos: (a) a votação nunca foi, verdadeiramente, sobre a CE, mas sim, em França, sobre Jacques Chirac e, na Holanda, sobre o custo económico que esta tinha de suportar; (b) os votantes não votaram contra uma CE, mas sim contra a atual conjuntura da UE.
Deste modo, não pensamos que a rejeição seja um impedimento ad aeternum para uma futura CE, nem, como alguns afirmaram, uma morte automática das posições que defendiam a existência de um “povo europeu”, desde logo porque, tendo em conta a natureza do processo eleitoral europeu, os cidadãos eleitores baseiam-se, intensamente, na popularidade do governo nacional ou, ainda, da própria UE e não, infelizmente, no efetivo conteúdo da proposta.
Extravasando o caso da França e da Holanda, podemos olhar, com alguma espécie, para o facto da Convenção não ter recebido nenhum tipo de poder constituinte e, até, nem sabermos quem é que efetivamente teria o poder de atribuir esse poder constituinte. Os céticos apontam, frequentemente, que o poder constituinte reside no povo e apenas este povo pode atribuir poderes, por exemplo, à Convenção, para exarar uma Constituição. Embora esta posição pareça ser algo razoável, uma vez que a existência de um “povo europeu” é algo dúbia, não podemos, desde logo, deixar-nos consumir por tal pessimismo.
Não acreditamos que esta analogia seja correta.
Pode, efetivamente, existir uma Constituição Supranacional sem existir um “povo europeu”, sem prejuízo de um processo democrático, sendo que a criação de uma CE “inaugura formalmente o constitucionalismo pós-nacional, deixando para trás os dogmas de uma modernidade obsoleta: o Estado nacional, a soberania e o poder constituinte”. Entre nós, FERREIRA DA CUNHA, defende precisamente isto que afirmamos: “(a CE) é de pleno direito, uma Constituição (...) embora seja uma Constituição que, em muitos aspetos rompe com os cânones consagrados (...) se afasta dos procedimentos de constitucionalização tidos por normais”. Não obstante os defensores da recusa de uma Constituição terem sido tratados como “hereges anti-europeus”, não devemos sucumbir a esta pressão política e social e ignorar a derradeira questão: será que faz sentido, juridicamente, falar-se de uma CE?
Ora, salvo melhor entendimento, pensamos que a construção de uma Constituição nunca andou muito longe da prática Europeia. Diga-se, desde já, que tendo em conta o poder que é atribuido à jurisprudência do Tribunal de Justiça, com base nos Tratados e restante legislação europeia, em firmar decisões com base no princípio da Case Law, podemos observar, na jurisprudência, uma tendência em afirmar que o Direito Europeu é superior ao direito dos Estados Membros e, até, às próprias Constituições Nacionais (neste sentido, Ac. Costa/ENEL e Ac. Internationale Handelsgesellschaft) embora sofra, claro está, algumas limitações (veja-se, por exemplo, o Ac. Comet, Ac. Landtová, Ac. Kapferer, entre outros). Desde o Tratado de Roma, que alguma literatura apelida estes elementos normativos basilares, como sendo “(...) o primeiro elemento de uma Constituição da Europa”. Em acrescento, o próprio TJ considera os atuais Tratados como sendo uma “carta constitucional de uma comunidade de direito”. Também podemos apontar, por exemplo, o poder atribuído pelos Tratados a determinadas instituições (como é o caso do BCE que, em grande parte, se assemelha à teleologia da Reserva Federal Americana), para impor aos Estados-membros determinadas condutas.
Podemos sublinhar, ainda, a consagração de princípios nos Tratados que, no seu coração, são profundamente constitucionais. A título de exemplo, podemos referir o princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados, o princípio do respeito pela diversidade cultural dos povos Europeus, o princípio da solidariedade, o princípio da democracia, o princípio da proporcionalidade, o princípio do equilíbrio institucional, o princípio da transparência, o princípio da integração diferenciada, o princípio da subsidiariedade, entre outros.
Por último, a criação da cidadania europeia manifesta, quiçá, um demos europeu. Sem prejuízo do que diremos no último capítulo, a afirmação da cidadania europeia (maxime, no art. 21.º do TFUE) e das restantes liberdades fundamentais, tem potencial para destruir por completo as barreiras e fronteiras físicas e invisíveis entre os Estados e povos da Europa, afirmando que os povos são o pilar último que “sustenta toda a estrutura democrática desta nossa União” e existe um verdadeiro “povo europeu”.
Tudo isto demonstra que, pelo menos, podemos falar de uma Constituição Material, tendo em conta as parecenças com as Constituições dos Estados Federais e dos próprios Estados Europeus e a teleologia dos elementos descritos. Assim, não se podendo falar de uma Constituição Formal, a afirmação de uma Constituição Material Europeia é, a nosso ver, inegável. Por outras palavras, não são já os Tratados, as decisões do TJ e todo o princípio do primado uma demonstração de uma Constituição Material Supranacional, visto que as normas da UE devem sobrepor-se às normas dos Estados, mesmo até às próprias constituições nacionais?
De todo o modo, a União está, claramente, a sofrer, desde a não aprovação do Tratado Constitucional, uma severa crise de identidade, sendo, até, apelidada, por PAULO RANGEL e JACQUES DELORS, de O.P.N.I, ou seja, Objeto Político Não Identificado.
Uma Constituição é a base de todo o sistema legal de um Estado, é a norma normarum, na qual se define e regula toda a organização política, onde estão previstos todos os direito e garantias fundamentais dos “cidadãos”. Poderíamos argumentar, quiçá, que a adoção de uma Constituição permitiria, desde logo, focar, gradualmente, em qual é a verdadeira identidade da UE. Embora não possamos negar que a instauração de uma CE permitiria uma maior unificação de todos os Estados e, ainda, de todos os cidadãos, trazendo, “a Europa mais perto das pessoas”, será que podemos afirmar que uma CE teria o benefício de, finalmente, e fugindo às criticas de PAULO RANGEL, atribuir uma designação estável a este O.P.N.I? Ora, não parece que seja assim, tendo em conta que o próprio TECE parecia transparecer uma dualidade, isto é, características de confederação e de federação.
Por um lado, e quanto ao federalismo, o TECE consagrava: uma prevalência do DUE sobre o direito dos Estados-membros (art. I-6.º); a inclusão da CDFUE no corpo do diploma (Parte II do TECE); a substituição da terminologia regulamento, diretiva, recomendação e parecer, por lei europeia e lei-quadro europeia (art. I-33.º); e a consagração da personalidade jurídica internacional da UE (art. I-7.º).
Não obstante, poderíamos afirmar que, hodiernamente, já se poderia incetar um novo processo para lavrar uma nova CE, com menor oposição, caso fosse efetivamente possível afirmar que existe um “povo europeu” (isto, claro está, sem prejuízo do que já dissemos no capítulo anterior a este respeito). Alguma literatura argumenta que, hoje, podemos efetivamente falar de um “povo europeu”, tendo em conta os artigos 20.º e ss. do TFUE e os desenvolvimentos jurisprudenciais. Contudo, infelizmente, e contra os nossos desejos, a cidadania europeia não é argumento eficaz para justificar a existência de um “povo europeu” que, desta forma, satisfaça a fome dos céticos de um titular do poder constituinte.
Não parece que própria cidadania possa ser uma justificação para um “povo europeu”, tendo em conta que aquela manifesta uma dimensão funcional e ligada à UE, isto é, a cidadania não é autónoma. Desde logo, porque esta apenas é reconhecida àqueles que têm “a nacionalidade de um Estado-membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui” (art. 20.º/1 do TFUE). Note-se, ainda, que mesmo esta aquisição da cidadania da União está profundamente ligada às leis da nacionalidade internas dos Estados (assim, Ac. Rottman), ou seja, “o estado-nação continua, pois, a ser a matriz da cidadania”.
Não obstante, e exluída a existência formalizada de um “povo europeu”, podemos ver, claramente, por tudo o que dissemos logo no início deste ensaio, que a Europa não é um mero projeto económico. Embora tenha aromas de unidade económica, para nós, o principal ingrediente para o sucesso de uma interligação dos Estados Europeus é a unidade espiritual, como, aliás, já em 1308 era reconhecido por DANTE, no seu Tratado de Monarchia e por IMMANUEL KANT na sua obra “A Paz Perpétua”, de 1795. Sendo que esta unidade espiritual não advém da “vontade” dos Estados-membros como entidades abstratas, mas sim de uma manifestação etérea dos sentimentos de pertença daqueles por detrás dessas entidades. Infelizmente, porém, pensamos que ainda seja cedo para reacender a fogueira da Constituição Europeia formal, mas, sinceramente, gostávamos muito de um dia poder afirmar o contrário e, ainda, que os laços entres os Estados e os cidadãos se reforçassem ainda mais; deixando de existir “jogos de poder” e patriotismos exagerados e que, no futuro, os nossos filhos e netos dissessem com orgulho que são Cidadãos da Europa.